Sentado em uma mesa azul vestindo seu tradicional chapéu de vaqueiro, o pastor Valdemiro Santiago de Oliveira, líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, começa a falar para a câmera com sua já tradicional voz rouca. “Na ultima reunião de bispos e pastores apresentamos laudo médico de gente em estado terminal, gravíssimo [de covid-19]. E Deus operou e fez maravilha”, afirma. Neste momento a tela do vídeo se divide em dois, e um homem com máscara exibe um suposto exame negativo para a doença. “O segredo da cura? Semente ‘Sê tu uma bênção’ é o nome”. A câmara dá um close na fava milagreira: trata-se de um grão de feijão com a frase “Sê tu uma benção” gravada, vendido por até 1.000 reais pelo pastor. É contra esse tipo de iniciativa que profissionais de medicina de todo o mundo, cansados de enfrentar uma pandemia na linha de frente dos hospitais e ainda precisar lidar com fake news e desinformação nas redes sociais, lançaram uma campanha-manifesto para denunciar a “infodemia” na Internet.
O manifesto, assinado por centenas de profissionais dos Estados Unidos, Itália e Brasil, e apoiado por entidades de classe como o Conselho Federal de Enfermagem, começa em tom de desabafo: “Nosso trabalho é salvar vidas. Mas neste momento, além da pandemia da covid-19, enfrentamos também uma infodemia global, com desinformações viralizando nas redes sociais e ameaçando vidas ao redor do mundo”. O vídeo do pastor Valdemiro foi alvo de uma ação do Ministério Público Federal em São Paulo, que pediu ao Google, empresa dona da plataforma de vídeos YouTube, retirasse o conteúdo do ar, alegando que “tal atitude pode auxiliar na crise epidêmica atual, fazendo alusão e ligação com suposto caso concreto de pessoa que teria se curado de doença causada pelo novo coronavírus”. A procuradoria não descarta ainda uma denúncia por estelionato contra o líder religioso. Mas este caso é uma exceção.
O manifesto dos profissionais de medicina pede que os CEOs do Facebook, Twitter, Google e YouTube façam a correção de erros nos posts de desinformação de forma retroativa.”Para isso, devem alertar e notificar cada pessoa que viu ou interagiu com desinformação sobre saúde em suas plataformas e compartilhar uma correção bem elaborada preparada por verificadores de fatos independentes”, diz o texto. Só assim as milhares de pessoas que foram expostas ao conteúdo enganoso poderão ter acesso aos dados científicos. Outra exigência feita aos gigantes da tecnologia é a de que reduzam drasticamente o alcance de posts com mentiras, removendo a “desinformação nociva e as páginas e canais de quem promove esse tipo de conteúdo”.
Por fim, o manifesto afirma que “as empresas de tecnologia que facilitaram a disseminação de ideias e que lucraram com ela têm o poder e a responsabilidade de conter a disseminação mortal de desinformação e fazer com que as redes sociais parem de adoecer as nossas comunidades”. Para salvar vidas e restaurar a confiança em cuidados de saúde baseados na ciência, “os gigantes da tecnologia devem parar de fornecer oxigênio às mentiras, fraudes e fantasias que ameaçam toda a humanidade”.
A cadeia de ‘fake news’ – No Brasil, parte da desinformação com relação ao coronavírus e de como evitar o contágio sai da boca do presidente Jair Bolsonaro diretamente para as redes sociais. O mandatário e seus filhos, todos com presença ativa na Internet, são defensores ferrenhos da cloroquina e da hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19, sem mencionar que ainda não há nenhum estudo conclusivo que aponte benefícios do uso da droga para tratar as vítimas do coronavírus. Os Bolsonaro também são críticos frequentes da política de isolamento social defendida por médicos, especialistas e pela Organização Mundial de Saúde. O próprio presidente teve alguns vídeos seus retirados do Twitter e do Facebook, uma vez que ele aparecia nas imagens sem máscara e provocando aglomerações nos arredores de Brasília.
Parlamentares da base do presidente pegam carona na disseminação de fake news e espalham boatos visando desgastar opositores de Bolsonaro, como os governadores favoráveis à quarentena. A deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP), por exemplo, foi responsável por reproduzir em entrevistas e redes sociais a informação falsa de que caixões estão sendo enterrados vazios no Ceará com a finalidade de inflar os números de óbitos pela doença. O Estado é um dos mais atingidos pela doença, e seu sistema saúde beira o colapso.
Mas a mentira nem sempre tem nome. Uma postagem apócrifa viralizou no país, e inclusive se tornou meme: “A família do primo do meu porteiro está revoltada! Ele morreu quando foi trocar o pneu do caminhão e ele estourou na cara dele, e os médicos colocaram no atestado de óbito que foi covid!”. Milhares de compartilhamentos.
O surgimento de falsas curas milagrosas ou teorias conspiratórias envolvendo doenças não é nova, e nem exclusiva do novo coronavírus. “No Facebook, vimos alegações de que o dióxido de cloro ajuda as pessoas sofrendo de autismo e câncer; que milhões de cidadãos dos EUA tinham sido infectados com o ‘vírus do câncer’ por meio da vacina contra a pólio; que o Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade tinha sido ‘inventado pela grande indústria farmacêutica’. E a lista continua…”, diz o texto divulgado na plataforma de campanhas Avaaz.
Uma vez plantada, a desinformação viaja e cresce rápido, como a fava milagrosa do pastor Valdemiro. “Um post do Facebook que dizia que o gengibre era 10.000 vezes mais eficaz no tratamento do câncer do que a quimioterapia foi curtido, compartilhado e comentado quase 30.000 vezes. É por isso que hoje estamos apelando aos gigantes da tecnologia para que tomem imediatamente uma medida em conjunto para acabar com o fluxo de desinformação sobre saúde e a crise de saúde pública que este fluxo causou”, continua o texto.
Fonte_COFEN
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