Enganei toda minha família. Desviei
dinheiro da empresa do meu pai, da qual eu era sócio há mais de 15 anos.
Cheguei ao ponto de vender minha casa para jogar. Contraí dívidas com bancos e
agiotas. Tive momentos em que pensei em tirar minha própria vida”.
O
depoimento do empresário André Holanda Rodrigues Rolim, feito durante audiência
pública da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Apostas Esportivas,
revela a dimensão devastadora do problema vivido por milhões de brasileiros que
caíram no vício das apostas online.
Criada
em outubro de 2024 pelo Senado Federal, a chamada “CPI das Bets” investigou
irregularidades no setor. Em junho de 2025, após oito meses de apuração,
recomendou o indiciamento de 16 pessoas, entre empresários, donos de
plataformas e influenciadores digitais. Apesar das evidências, o relatório
acabou arquivado (12/6) numa sessão bem esvaziada (veja abaixo).
De
aparência inofensiva, as apostas online, popularmente conhecidas como bets — do
termo em inglês “bet”, que significa aposta — tornaram-se um fenômeno de massa
no Brasil. Com a promessa de ganhos rápidos e acessíveis por meio de qualquer
celular, as plataformas se espalharam com velocidade. Nas ruas, transportes
públicos, locais de trabalho e até nas salas de aula, é cada vez mais comum ver
apostadores conectados. A exigência de maioridade é facilmente burlada.
“As
plataformas de aposta são desenhadas para gerar dependência. A facilidade de
acesso, a ampla divulgação e a lógica de recompensa imediata contribuem para
criar um ambiente propício ao vício. Isso está levando milhões de brasileiros a
uma espiral de perdas financeiras, isolamento social e sofrimento psíquico”,
afirma à Radis o pesquisador e psicólogo Altay de Souza,
doutor em Psicologia Experimental pela Universidade de São Paulo (USP).
“Estamos diante de uma nova emergência
em saúde pública. O vício em apostas online já pode ser visto como uma epidemia
no Brasil”
Altay
de Souza, doutor em Psicologia Experimental pela USP
Ele
alerta que o jogo compulsivo afeta diretamente a saúde mental dos apostadores.
“Temos observado um aumento expressivo na demanda por atendimento de pessoas
com sintomas de ansiedade, depressão, crises de pânico e até ideação suicida
associada ao uso compulsivo dessas plataformas”, declara. Segundo ele, os
serviços de saúde já estão sobrecarregados e a demanda por acompanhamento na
área de saúde mental está cada vez maior. “Estamos diante de uma nova
emergência em saúde pública. O vício em apostas online já pode ser visto como
uma epidemia no Brasil”, ressalta.
Referência
nacional no tratamento de pessoas com transtornos relacionados ao jogo, o
psiquiatra Hermano Tavares, que coordena o Ambulatório do Jogo Patológico do
Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), também faz duras
críticas à legalização das bets. “É como se tivéssemos instalado um cassino em
cada bolso’, frisa, em entrevista à Radis [Leia clicando aqui].
Segundo ele, o número de adolescentes expostos aumentou muito desde a legalização dos jogos online. “Embora ainda seja proibido apostar antes dos 18 anos, isso é amplamente desrespeitado. E o impacto nessa faixa etária é particularmente cruel: compromete a formação escolar, a saúde mental e a inserção social”, aponta.
Ludopatia
Diagnosticado
com ludopatia, transtorno mental associado ao jogo compulsivo, o empresário
André Rolim disse à CPI das Bets que passou quatro meses internado em uma
clínica psiquiátrica. Hoje, em recuperação, ele alerta para os riscos das
apostas online, especialmente entre os jovens. “Fui diagnosticado com
ludopatia, ou jogo patológico. Vejo que muitos têm a ilusão de que o jogo
online é uma renda extra, um investimento. Isso me assusta. Fiz dívidas, perdi
dinheiro, quase me divorciei. É devastador.”
De
acordo com dados da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), o número de
atendimentos ligados ao vício em apostas cresceu mais de 300% nos últimos cinco
anos. Altay de Souza corrobora o depoimento de André. “Recebo muitos jovens com
histórico recente de endividamento, insônia, queda no rendimento escolar e
afastamento da família. Muitos abandonam os estudos ou perdem o emprego. A
aposta vira uma prioridade, um vício que domina a rotina”, relata o psicólogo.
Altay
também destaca a importância de desmistificar a ideia de que as apostas são uma
forma de investimento, esclarecendo que, na realidade, elas representam um
risco significativo à saúde mental e financeira dos indivíduos.
Os
principais sinais de alerta, segundo ele, são a persistência em apostar mesmo
após perdas significativas, o uso de dinheiro essencial para continuar jogando,
o isolamento social e mudanças de humor, como irritabilidade ou apatia. “Quando
a aposta passa a interferir nas relações afetivas e compromissos cotidianos, é
hora de ligar o sinal vermelho”, avalia.
Altay
colaborou na análise do mais recente relatório da Associação Brasileira das
Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) e cita alguns dados da
pesquisa, divulgada em maio de 2025. “Cerca de 4 milhões de brasileiros já
apresentam comportamentos de risco relacionados às apostas online. Quase metade
dessas pessoas está endividada e 52% continuam apostando na tentativa de
recuperar perdas, o que tende a agravar ainda mais o impacto emocional e
financeiro”, diz.
A
pesquisa, segundo Altay, deixa claro que a possibilidade de ganhos rápidos é
que faz as pessoas apostarem, e que os mais jovens — entre 18 e 24 anos — são
os mais expostos. “O vício em apostas online não está restrito a um perfil
específico, podendo afetar qualquer pessoa exposta a essas plataformas. No
entanto, a exposição constante e a falta de compreensão sobre os mecanismos das
apostas aumentam a vulnerabilidade, especialmente entre os jovens e aqueles que
acompanham influenciadores digitais que promovem essas práticas”, alerta.
Cumplicidade
dos influenciadores
A
influência de celebridades e criadores de conteúdo digital é um dos pontos mais
controversos desse debate. Em contraponto ao apoio de influenciadores a essas
plataformas, o padre Patrick Fernandes, conhecido por seu grande alcance nas
redes, fez questão de depor à CPI (21/5).
“Com
certeza já é um caso de saúde pública. Hoje, a ludomania é classificada como
uma doença, um transtorno mental, que é justamente o vício nos jogos e os
estragos que isso pode causar na vida de uma pessoa. E isso está acontecendo de
forma não velada. É o que estamos testemunhando”, disse à Comissão Parlamentar
de Inquérito. O padre também fez duras críticas aos influenciadores que
apoiam o jogo. “Quem está ficando rico, com certeza, é quem está divulgando”.
Altay
vê com desconfiança a atuação da CPI. Para ele, os senadores não abordaram
adequadamente a gravidade do problema. “É necessário discutir a
responsabilização dos influenciadores digitais que promovem as apostas, muitas
vezes sem transparência sobre os riscos envolvidos, mas com seriedade. Esses
influenciadores desempenham um papel significativo na disseminação do vício,
utilizando sua influência para atrair seguidores para as plataformas de
apostas”, reflete.
Desde
o dia 1º de janeiro de 2025, o setor das apostas online passou a ser regulado
pelo governo brasileiro. Na prática, a regulamentação das apostas online não
alterou em nada a movimentação dos jogos. De acordo com o Banco Central (BC),
de janeiro a março deste ano, os brasileiros destinaram cerca de R$ 30 bilhões
por mês nessas plataformas.
Sobre a regulação desse mercado, Altay é taxativo. “Pessoalmente não defendo a regulação, mas sim a proibição total das apostas online no Brasil”, aponta, argumentando que a regulamentação não é suficiente para conter os danos causados por essas plataformas. “Se for regulação, no mínimo, deveria ser como a feita à indústria do cigarro, sugerindo a adoção de medidas rígidas semelhantes para proteger a população”.
Espetáculo
na CPI
Após
oito meses de trabalhos e com um início midiático, a Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) do Senado que investigou os impactos das plataformas de apostas
e jogos online no orçamento das famílias brasileiras, além de crimes como
lavagem de dinheiro e evasão de divisas envolvendo apostas, foi
arquivada.
Na
última sessão da CPI, os senadores rejeitaram, por 4 votos a 3, o relatório
final da senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) que, entre outras orientações,
sugeria o indiciamento de 16 pessoas: “Eu não vou jogar no lixo. Estive em
contato com provas robustas. Não posso, agora, me omitir e enfiar isso debaixo
da gaveta. Entregarei todas as provas para as autoridades competentes”, disse.
Mesmo
com tantas evidências, o lobby das casas de apostas atuou fortemente para o
esvaziamento da CPI, que ao longo dos meses viu o interesse da mídia cair
drasticamente. Relatos como o do empresário André Rolim, que abre essa
reportagem, passaram quase despercebidos do grande público.
Depoimentos
de influenciadores como Virgínia Fonseca e Rico Melquiades, que chamaram a
atenção no início dos trabalhos da CPI, foram espetacularizados e se tornaram
apenas uma nova oportunidade de “cliques”, aumentando ainda mais o número de
seus seguidores.
No
dia em que Virgínia foi ouvida (17/5), até um dos senadores (Cleitinho Azevedo,
do Republicanos-MG) pediu pra tirar uma selfie e gravar um vídeo com a
influencer. Ironicamente, ela chegou à sessão vestida como uma adolescente, de
moletom colorido, óculos de grau e portando uma garrafa d’água cor de rosa. Fez
caras e bocas para determinadas perguntas, demonstrou desentendimento a outras
e se recusou a responder várias delas. Pouco ou nada acrescentou.
Mesmo
assim, o parecer da senadora concluiu que houve no Brasil um crescimento
descontrolado e desregulado das bets. “Abusos claros, com influenciadores
simulando apostas falsas, propagandas apresentando as apostas como meio de
investimento ou de ficar rico facilmente”, diz o texto.
Ainda
segundo o documento, o setor movimentou cerca de R$ 129 bilhões apenas em 2024,
com realocação de recursos de famílias de classes mais baixas em apostas. O
parecer destaca que 40% dos jogadores de apostas de quota fixa pertencem às
classes D e E, enquanto 45% estão na faixa C — apenas 16% se situam nos
estratos sociais A e B. “Considerando a distribuição de renda da população
brasileira em geral, temos uma sobrerrepresentação da parcela mais pobre no
número de jogadores”, pontuou Soraya.
Mesmo
com o arquivamento da CPI, a senadora afirmou que entregará o relatório final
ao Ministério Público e à Polícia Federal. “Todos os brasileiros saberão que
não terminou e não terminará em pizza. Eu não sou a pizzaiola”.
Ao
redor do mundo
A
epidemia das apostas online não é um problema apenas no Brasil. Nações do mundo
todo assistem com preocupação ao crescimento do vício e do endividamento social
e ao aparecimento de distúrbios relacionados à saúde mental dos apostadores.
Países
como Alemanha, Portugal, Holanda e Bélgica restringem os anúncios a
determinados horários — normalmente no fim da noite ou na madrugada. Na França,
as bets são autorizadas exclusivamente para jogos esportivos — modalidades de
cassino e/ou do “Tigrinho” foram totalmente proibidas.
A
Espanha, por exemplo, permite a propaganda de bets esportivas na televisão
apenas entre 1h e 5h da manhã — além de proibir o patrocínio de times de
futebol nas principais categorias do país, assim como fez a Itália. No Reino
Unido, as empresas ligadas a jogos online estarão proibidas de patrocinar os
clubes da Premier League a partir da temporada 2026/2027. No Canadá, atletas
profissionais são proibidos de participar em ações promocionais ligadas às
apostas.
Entre
as nações que permitem apostas online, China e Coreia do Sul são as que aplicam
as regras mais rígidas. Os chineses viveram o “boom” da modalidade entre 2005 e
2014, com um aumento significativo de transtornos mentais e lavagem de
dinheiro, até que em 2015 o governo proibiu por completo a modalidade —
atualmente, apenas algumas loterias esportivas são permitidas. Na Coreia do
Sul, apenas uma empresa tem a licença para operar os jogos, físicos e
online.
Enquanto alguns países ao redor do mundo já impõem restrições às apostas online, o Brasil ainda parece longe de um consenso sobre como proteger sua população mais vulnerável. Apenas como exemplo, as bets patrocinam os 20 clubes da primeira divisão do futebol brasileiro e estão presentes em 70% das placas publicitárias dos estádios de todo o país. O risco, alertam especialistas, é que essa epidemia silenciosa continue a devastar vidas em troca do lucro fácil de poucos.
Fonte _ FioCruz
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