Em 18 de setembro de 1973 nascia o Programa Nacional de Imunizações – ou PNI, como é carinhosamente conhecido pela maioria da população. A data marca a aprovação do documento que consolidou as estratégias responsáveis por universalizar o acesso às vacinas em todo o país. Ao longo de suas cinco décadas de existência, o programa tem levado mais de 20 tipos de imunizantes aos braços dos brasileiros e acumulado conquistas louváveis, como a erradicação da varíola e da poliomielite, consolidando-se mundialmente como um dos mais bem-sucedidos exemplos de política pública de saúde.
“Na
década de 1970, início do programa, a cada 1.000 crianças nascidas vivas, 100
morriam, sendo a maioria em decorrência de doenças imunopreveníveis. Hoje, a
taxa de mortalidade caiu para 12, enquanto a expectativa de vida saltou de 55
para 80 anos. Junto com o acesso à água potável e o uso de antibióticos, as
estratégias de vacinação impactaram profundamente a vida dos brasileiros”,
observa a doutora em Medicina Tropical e ex-coordenadora do PNI Carla
Domingues.
O
programa, constantemente elogiado por dirigentes das Nações Unidas, foi
laureado em 1991 com o Prêmio Criança e Paz do Fundo das Nações Unidas para a
Infância (UNICEF) pelos esforços em prol da vacinação infantil e firmou
importantes parcerias, contribuindo com a organização de campanhas no Timor
Leste, a implementação de planos de vacinação na Palestina, na Cisjordânia e na
Faixa de Gaza, além de cooperação técnica com Estados Unidos, México, Guiana
Francesa, Argentina e outros países. Além disso, é graças ao PNI que a
Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) situa o Brasil como um dos poucos países do mundo que oferecem um
extenso rol de vacinas gratuitas à sua população.
Pistola
de vacinação foi usada na campanha contra a varíola
Modelo
de excelência
Quando
foi criado, o PNI consolidou uma série de aprendizados adquiridos durante a
Campanha de Erradicação da Varíola, realizada em 1966, e o Plano Nacional de
Controle da Poliomielite, organizado em 1971, como a imunização maciça em um
curto período e a vigilância epidemiológica.
“Antes,
tínhamos programas verticais. Alguns eram executados em esfera federal, como as
campanhas contra a varíola, tuberculose e febre amarela, e por mais que tenham
sido exitosos, tiveram certa limitação de acesso. Já outras campanhas eram
encabeçadas apenas pelos estados com recursos disponíveis para a compra de
vacinas. Porém, as ações eram pouco abrangentes, gerando baixo impacto na carga
da doença”, explica Carla Domingues.
Em
um primeiro momento, um dos diferenciais impostos pelo PNI foi justamente a
consolidação de uma gestão única, coordenada pelo Ministério da Saúde. Com
isso, o Brasil passou a adotar uma política de vacinação universal e
equitativa, com um calendário unificado, garantindo o acesso e a
disponibilidade de imunizantes em todas as cinco regiões do país –
independentemente de quão longínquo ou populoso fosse um município.
Veículo
em dia de vacinação na década de 70, dentro do Plano Nacional de Controle da
Poliomielite
Outro
ponto foi o programa ter sido estruturado como uma política de estado,
descolada da figura de um político ou governo, garantindo assim sua
continuidade e evolução. “Abraçar a imunização como uma política nacional foi
algo inovador e que até hoje difere bastante dos outros países, sejam eles
ricos ou em desenvolvimento”, pontua Mariângela Simão, atual
diretora-presidente do Instituto Todos pela Saúde (ITpS) e ex-diretora-geral
adjunta da Organização Mundial da Saúde (OMS) – a médica pediatra e sanitarista
foi acometida pelo vírus da poliomielite quando tinha apenas 9 meses de vida.
Para
assegurar o fortalecimento e avanço do PNI, adaptações foram necessárias ao
longo desses 50 anos. Uma delas ocorreu em meados da década de 1990, quando o
modelo de gestão única foi deixado de lado, passando então a englobar os três
níveis de governo: municipal, estadual e federal. Nessa nova configuração, a
compra e o fornecimento de vacinas, assim como a normatização técnica, a
supervisão e a coordenação, seguiram sob responsabilidade da pasta nacional,
enquanto a aplicação da vacina em si – que envolve a disponibilidade de
insumos, além da capacitação profissional – ficou a cargo dos estados e
municípios.
Mariângela
Simão, atual diretora-presidente do Instituto Todos pela Saúde (ITpS) e
ex-diretora-geral adjunta da Organização Mundial da Saúde (OMS)
“A
centralização da compra de vacinas pelo governo federal é fator essencial para
a disponibilidade de imunobiológicos, uma vez que o volume adquirido não nos
deixa à mercê do preço”, afirma Mariângela Simão. Caso contrário, estados pouco
populosos pagariam muito mais caro, visto que o valor final da vacina varia de
acordo com o número de doses – detalhe que poderia reforçar ainda mais as
desigualdades do país.
Na
opinião da especialista, manter a produção local também é estratégico para a
garantia de abastecimento. Fazendo vistas a essa questão, na década de 1980 o
Ministério da Saúde criou o Programa de Autossuficiência Nacional em
Imunobiológicos, que levou investimentos para laboratórios do país. Atualmente,
o próprio Instituto Butantan é um dos principais fornecedores do PNI,
entregando as vacinas Influenza, de hepatite A e B, HPV, raiva e DTP.
Produção
da vacina Influenza realizada no Instituto Butantan
Imunização
de rotina e as grandes campanhas
Desde
a chegada da primeira vacina contra a varíola no Brasil, em 1804, até a criação
do PNI, em 1973, as ações de imunização no país tinham caráter episódico, sem
continuidade planejada e limitada área de cobertura. Com a consolidação do
programa, passou-se a adotar um plano muito mais abrangente e que valorizava a
imunização de rotina.
Para
instaurar essa cultura de que as pessoas deveriam ir regularmente ao posto de
saúde, foi realizado um maciço trabalho de comunicação. De acordo com a
ex-coordenadora do PNI, a capacidade de informar a população sobre o papel das
vacinas para o controle e erradicação de doenças imunopreveníveis foi um dos
principais trunfos do programa. “Mais do que levar vacina, o PNI levou
conhecimento para as pessoas”, diz.
O
Dia Nacional de Vacinação atraia grande público
Foi
a partir da década de 1980, que os até hoje memoráveis Dias Nacionais de
Vacinação ganharam tração. Realizadas em períodos pré-determinados, essas
grandes campanhas sensibilizavam milhões de brasileiros, impactando quase que
imediatamente os índices de cobertura vacinal. No ano de 1980, por exemplo,
aconteceu uma enorme mobilização contra a poliomielite, fazendo com que a
incidência de casos despencasse de 1.200 para pouco mais de 100 no ano
seguinte.
Diante
dos resultados extremamente positivos, o país foi escolhido pelo UNICEF e pela
OPAS para encabeçar um programa de vacinação nas Américas que tinha três
principais objetivos: erradicar o vírus da poliomielite no Brasil, evitar
a morte de milhões de crianças e dar ainda mais credibilidade ao poder dos
imunizantes.
Famosas
por contarem com a força do personagem Zé Gotinha, as ações anuais contra
a doença chegaram a bater a marca de 15 milhões de crianças imunizadas em um
único dia. “As campanhas ganharam esse traço lúdico e se tornaram um momento de
descontração e felicidade”, lembra Carla Domingues.
Outro
exemplo bem-sucedido foi a Campanha Nacional de Vacinação contra o Sarampo, que
imunizou quase 50 milhões de crianças entre 9 meses e 14 anos de idade em
apenas quatro semanas, no ano de 1992. O número se referia a 96% do
público-alvo e, segundo o próprio PNI, foi um êxito nunca obtido em um país com
dimensões continentais.
Personagem
Zé Gotinha se tornou símbolo da Campanha Nacional de Vacinação
Principais
conquistas e futuro do programa
Na
esteira do sucesso da grande campanha de imunização realizada contra a varíola
ainda na década de 1960, o Brasil recebeu da OMS o certificado de erradicação
do vírus em 1973 – ano de criação do PNI. Em 1989, foi registrado na Paraíba o
último caso de poliomielite no país, que recebeu o certificado de eliminação da
doença em 1994. As estratégias abordadas pelo programa também foram
imprescindíveis para o controle do sarampo, do tétano neonatal, das formas
graves de tuberculose, da difteria, do tétano acidental e da coqueluche.
Criança
recebe a vacina contra poliomielite
Antes
restrito à imunização do público infantil, o PNI passou então a incorporar
novos imunobiológicos ao seu calendário, abrangendo toda a população.
Atualmente, são ofertadas gratuitamente 17 vacinas para crianças, sete para
adolescentes, quatro para adultos e idosos e três para gestantes, além das
vacinas contra a Covid-19 e o vírus influenza. Mais de 300 milhões de doses são disponibilizadas anualmente
pelo programa nas cerca de 40 mil salas de vacinação espalhadas por todo o país,
assegurando a todos os cidadãos brasileiros o direito à imunização.
Porém,
mesmo tendo uma das mais complexas políticas de vacinação do mundo, desde 2016
o país não tem conseguido atingir as metas de cobertura preconizadas para
grande parte das vacinas disponibilizadas na rede pública de saúde. Com isso, a
população fica exposta a problemas que, até então, estavam controlados ou até
mesmo eliminados – caso do sarampo, que em 2019 retornou ao Brasil, após a
eliminação do vírus três anos antes. Além disso, o país também figura
na lista de alerta da OMS como local de risco muito alto para a
reintrodução da poliomielite.
A
ex-coordenadora do PNI Carla Domingues lembra que, em 2018, foi feita uma
grande mobilização para melhor compreender e, consequentemente, interromper a
queda dos índices. As análises mostraram que questões multifatoriais têm levado
à não vacinação, desde uma nova geração de pais que não aderem às campanhas de
imunização por não terem convivido com muitas dessas doenças, até a falta de
tempo e a indisponibilidade de recursos da população para chegar até os postos
de saúde.
“Na
década de 1970, era comum que as mulheres ficassem em casa e assumissem esse
compromisso, mas hoje a maioria delas são arrimo de família. No dia que ficam
sem trabalhar para levar seus filhos para vacinar, elas também não ganham”,
observa. Soma-se a isso a própria complexidade de operacionalizar uma cadeia
cada vez mais robusta, que demanda horários de atendimento flexíveis, ampliação
dos times de profissionais de saúde e, consequentemente, a aquisição de mais
insumos. “Cada município tem seu problema, suas especificidades. É uma
complicação que precisa ser enfrentada”, completa Carla.
Alinhado
a essa questão, o Ministério da Saúde anunciou neste ano que vai investir em
ações de microplanejamento nos estados brasileiros. A abordagem é
inédita e vai envolver gestores e lideranças locais, para ajustar a estratégia
de vacinação de acordo com as realidades de cada região.
Retomar
a cultura de vacinação do país passa, também, pelo resgate da confiança da
população brasileira nos imunizantes e na própria ciência. “O enfrentamento às
fake news ainda é tímido. Precisamos de uma comunicação mais agressiva,
informar a importância das vacinas, dizer que elas estão disponíveis a quem
precisa e explicar a questão dos efeitos adversos”, reforça Carla Domingues.
Carla
Domingues é doutora em Medicina Tropical e ex-coordenadora do PNI
Por
fim, Mariângela Simão reforça a valorização do papel do vacinador, que está na
linha de frente. “A sala de vacinação é um lugar central nessa batalha”, afirma
a pediatra, destacando a importância de treinamentos adequados e regulares para
levar informações sempre atualizadas ao profissional de saúde. “Precisamos
muito dos nossos vacinadores. São eles quem ficam frente a frente com o
usuário. Boa parte do convencimento acontece diretamente ali, na ponta”,
finaliza.
Reportagem:
Natasha Pinelli
Fotos:
Marília Ruberti e acervo do Ministério da Saúde
Referências:
Caderno
de Saúde Pública. 46
anos do Programa Nacional de Imunizações: uma história repleta de conquistas e
desafios a serem superados
Ministério
da Saúde. Programa
Nacional de Imunizações: 25 anos
Ministério
da Saúde. Programa Nacional de Imunizações: 30 anos
Ministério
da Saúde. Programa Nacional de Imunizações: 40 anos
Observatório
de Politicas Cientificas. As razões por trás do sucesso e do declínio do PNI
Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro – Instituto de Relações Internacionais. O programa nacional de
imunizações versus o discurso antivacina: as graves consequências para a
sociedade brasileira
UNA-SUS. Entenda como funciona um dos maiores programas de vacinação do
mundo
Fonte_BUTANTAN
Nenhum comentário:
Postar um comentário