Se o gerenciamento da vacinação contra a Covid-19 no Brasil
está nos ensinando algo é que nada está garantido até que tenha acontecido.
Uma das poucas certezas é que amanhã, dia 17, a diretoria da
Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa vai se reunir para
autorizar ou não o uso emergencial de duas vacinas, a CoronaVac, da chinesa
SinoVac em parceria com o Instituto Butantan, e a da Universidade de
Oxford/AstraZeneca com a Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz. Na segunda-feira
termina o prazo de dez dias estabelecido
pela própria Anvisa para dar uma resposta aos pedidos de uso emergencial.
Passada a única certeza – a data limite da Anvisa –, começa um
emaranhado de dúvidas que envolve até mesmo qual vacina estará disponível
para os brasileiros. No momento em que este texto é escrito, a exportação
para o Brasil de dois milhões de doses da vacina de Oxford fabricadas na
Índia está vetada pelo
governo indiano, e o Ministério da Saúde brasileiro requisitou todo o estoque da
CoronaVac em poder do Butantan, seis milhões de doses.
Como não é possível responder às questões futuras, vamos
procurar esclarecer as dúvidas presentes sobre as vacinas que estão sendo
utilizadas e desenvolvidas para combater a mais grave pandemia a atingir a
Humanidade, desde a Gripe Espanhola, há pouco mais de cem anos.
Quantas vacinas estão em desenvolvimento ou em uso hoje?
Segundo levantamento do New York Times, 68 vacinas estão
sendo testadas em humanos, incluindo as que já estão em uso, e pelo menos
outras 90 estão em fase de experimentos em animais.
Como são feitos os testes?
Primeiramente, os laboratórios realizam experiências com
animais, verificando se a vacina tem efeitos colaterais e se, após
injetarem o vírus, funcionam. Se tudo certo, começam as fases de testes em
humanos. A primeira, com um pequeno grupo de adultos saudáveis, analisa se
a vacina é segura. A segunda, com centenas de pessoas, incluindo integrantes
de grupos de risco, aprofunda a análise da segurança e já começa a
verificar a eficácia. Finalmente a fase três pega um universo de milhares
de pessoas dos mais variados grupos para testar a eficácia em “condições”
normais.
Somente após o sucesso da fase três uma vacina pode receber
autorização de uso emergencial e registro definitivo. Há ainda a fase
quatro, a análise do resultado de um amplo programa de vacinação ao longo
dos anos. Só aí se pode saber, por exemplo, se a imunidade oferecida pela
vacina é permanente ou não.
O desenvolvimento dessas vacinas foi apressado?
Apressado, não; acelerado, sim. Normalmente uma vacina leva
anos para ser desenvolvida, com as fases acontecendo em sequência ao longo
de mais tempo, e os trabalhos de infraestrutura e fabricação começando
quase no momento da aprovação. Porém, a gravidade da pandemia exigiu
adaptações nesses processos, com as fases um e dois acontecendo quase
simultaneamente, a infraestrutura sendo montada desde os testes com animais
e a fabricação acontecendo em plena fase três – se a vacina fosse um
fracasso, bilhões de dólares seriam perdidos. Segundo a Organização Mundial
da Saúde - OMS, todos os protocolos de segurança foram obedecidos. Neste
caso, rápido não é sinônimo de mal feito.
Como as vacinas funcionam?
Embora busquem o mesmo objetivo, fazer com que o organismo
produza anticorpos contra a doença, as vacinas o fazem por métodos
diferentes. As duas que estão em análise pela Anvisa, por exemplo, usam de
forma diversa o mesmo princípio: injetar o vírus (ou bactéria, dependendo
da doença) no corpo para que este desenvolva defesas. Mas quando se diz
“injetar o vírus”, não se trata de pegar um Sars-Cov-2 em toda sua força e
botá-lo no organismo do indivíduo.
A CoronaVac, por exemplo, usa o sistema mais comum, o chamado
vírus inativo. O laboratório cultiva uma grande quantidade do vírus e
depois, por meios físicos e químicos, o torna incapaz de transmitir a
doença, o mata, por assim dizer. Mesmo assim, quando o vírus é injetado no
corpo, nosso sistema imunológico o reconhece como uma ameaça e cria
defesas. A mesma técnica é usada na vacina da indiana Bharat Biotech, que
empresas brasileiras querem comprar.
As grandes vantagens dessa técnica são que ela já foi
amplamente testada em outros imunizantes e é inofensiva para pacientes com
problemas no sistema imunológico (imunocomprometidos). Por outro lado, são
necessárias mais doses para garantir a imunidade.
Já a vacina de Oxford/AstraZeneca usa o vetor viral, o vírus
vivo. No caso um adenovírus, que provoca, esse sim, uma gripezinha. O
adenovírus recebe uma informação genética do Cov-Sars-2, geralmente da
membrana que o envolve, e é injetado no organismo. Nosso corpo começa então
a reagir à informação do coronavírus e desenvolve os anticorpos antes que
ele possa agir. Para tornar o processo mais seguro a AstraZeneca usou
adenovírus de macacos, dificultando ao vírus se adaptar ao novo hospedeiro.
Além de também já ser usada em dezenas de outras vacinas, essa
técnica permite uma imunidade mais duradoura. Entretanto, pessoas
imunocomprometidas correm o risco de não desenvolverem anticorpos a tempo e
acabarem contaminadas por uma eventual reativação do vírus. O armazenamento
desses dois tipos de vacinas requer temperaturas entre -2º e -8º C, obtidas
com equipamentos convencionais.
Mas essas são as vacinas em análise no Brasil. Americanos e
britânicos estão tomando imunizantes da Pfizer/BioNTech e da Moderna feitos
com uma técnica recente e radicalmente diferente, a imunização gênica.
Nela, os cientistas injetam em nosso organismo o código genético do vírus
para que nosso RNA, a macromolécula que transmite as informações genéticas
do DNA, o inclua em nossas células. Assim, o próprio organismo cria a
proteína do Sars-Cov-2, sem o vírus, e aciona o sistema imunológico.
Por não requerer a cultura de grandes quantidades do vírus em
laboratório e sua inativação ou atenuação, as vacinas gênicas têm um custo
muito menor e podem ser produzidas mais rapidamente. Seu grande problema é
que exigem temperaturas de -70ºC, o que cria um imenso problema logístico
de transporte e armazenamento.
Como é uma técnica nova e está sendo usada pela primeira vez
numa vacina para humanos, foi alvo dos mais disparatados boatos, inclusive
que alteraria o DNA humano. Isso não é verdade.
Existem outros métodos, mas esses são os que estão predominando
no combate à Covid-19.
O que é a eficácia?
Um dos termos menos compreendidos quando se fala de vacinas é
“eficácia global”, interpretada pelo público em geral como “se a vacina
funciona”. Não é isso. Primeiramente, é preciso entender como se calcula a
eficácia de uma vacina. Durante os testes com pessoas, metade dos
voluntários recebe a vacina de verdade e a outra metade um placebo, uma
substância sem qualquer efeito – e espera-se para ver quem fica doente. É
estabelecido um número x de infecções, e, quando ele é atingido, compara-se
a quantidade de casos nos dois grupos. A eficácia global é a diferença
percentual entre os casos nos que tomaram a vacina e nos que tomaram o
placebo.
Para a OMS e a Anvisa, uma vacina funciona quando sua eficácia
global fica acima de 50%. Mas isso não é tudo. É preciso avaliar a eficácia
da vacina diante dos diversos níveis de gravidade da doença. Nesta semana,
o anúncio de que a CoronaVac tinha eficácia global de 50,38% provocou
surpresa e até deboche.
Para os leigos, parecia que só metade dos vacinados desenvolvia
anticorpos. Não é isso. Todos desenvolvem, mas a eficácia varia. A vacina é
78% eficaz nos casos moderados da doença, quando é necessária internação, e
100% eficaz nos casos graves, nos quais o paciente precisa ser intubado.
Mas, se a vacina serve para evitar que se tenha a doença, como
se chegou a esses números? Simples. De todos os voluntários que tomaram a
CoronaVac, nenhum teve um caso grave (100% de eficácia), 22% tiveram casos
médios (78% de eficiência) e 49,62% tiveram casos leves, tratáveis em casa
(50,38% de eficiência). Ou seja, ela pode reduzir pela metade o número de
novas infecções e impedir novas mortes. O que é muito bom.
O que os especialistas ressaltam é que, com a eficácia menor,
torna-se mais importante a ampla cobertura, com a vacinação do maior número possível de
pessoas, de forma a criar um cordão de imunidade.
Tomar apenas uma dose é eficiente?
Não. Todas as vacinas que já estão em uso requerem ao menos
duas doses para garantia de imunidade. Entretanto, estamos em uma situação
de calamidade global. Diversos países, incluindo Reino Unido, onde a
vacinação já está em andamento, e Brasil, onde não sabemos quando começará,
estudam atrasar a segunda dose de forma a aplicar a primeira no maior
número possível de pessoas. A OMS admite que o intervalo entre as doses
possa chegar a seis semanas em
situações extremas, mas diz que o ideal é que a segunda seja aplicada entre
três e quatro semanas após a primeira.
Quantos países já estão vacinando?
Até o momento, 52 países já
iniciaram campanhas de vacinação, e a Oceania é o único continente onde
ainda não houve imunizações. Em termos absolutos, Estados Unidos e China
lideram, com 12,2 milhões e 10 milhões de
vacinados. Já em termos percentuais, Israel já imunizou 25,34% da
população.
Quando e como será a vacinação no Brasil?
“Quando” é a pergunta de um milhão de dólares. O Ministério da
Saúde pretendia fazer uma cerimônia no dia 19 e iniciar a campanha no dia
20, mas o imbróglio com a Índia fez o evento ser adiado,
mas não se sabe se a vacinação começará mesmo no dia 20 com os imunizantes
requisitados ao Butantan.
Já o “como” é razoavelmente conhecido. As doses serão
repassadas aos estados e municípios, responsáveis pela aplicação de acordo
com o critério de prioridades. A fase 1 abrangerá profissionais de saúde,
maiores de 75 anos e maiores de 60 que vivam em instituições de longa
permanência. Na fase 2 serão imunizadas pessoas entre 60 e 74 anos. Na 3,
portadores de comorbidades agravantes de Covid, como diabetes, hipertensão
e obesidade. Finalmente, na 4, professores, profissionais das forças de
segurança e salvamento, funcionários do sistema prisional e detentos. Só
depois virá a população em geral. Confira a íntegra do
plano nacional de vacinação.
Ainda há perguntas cujas respostas só virão durante e após a
vacinação, mas o fundamental é ter em mente que a vacina é nossa melhor
arma contra essa doença. Tome-a tão logo seja possível.
Por Leonardo Pimentel
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