A
criança de 10 anos que engravidou após ser violentada por um tio em São Mateus,
no Espírito Santo, começou o procedimento de aborto neste domingo, após o Tribunal
de Justiça do Espírito Santo conceder a ela o direito previsto na lei
brasileira de interromper uma gravidez fruto de um estupro. Por tratar-se de
uma menina que era violentada desde os 6 anos, o caso deveria correr em
absoluto sigilo, como tantos outros no Brasil, pela preservação da vítima e por
tratar de um assunto delicado, que é o aborto, mesmo legal. Mas o processo da
menina virou joguete político, depois de vazar para a imprensa sem explicação.
O caso deveria ter ficado no âmbito da saúde, uma vez que outros casos do
gênero nem passam pela Justiça. O procedimento de aborto foi concluído nesta
segunda-feira.
Centenas
de meninas estupradas são obrigadas a recorrer um aborto legal no Brasil sem
precisar de autorização da Justiça e sem que a opinião pública tome
conhecimento. O papel do serviço de saúde é seguir o protocolo do Ministério da
Saúde para estes casos e realizar a interrupção da gravidez. Mas a repercussão
obrigou o Estado do Espírito Santo a buscar uma solução longe dali. A menina
viajou para o Recife, onde foi atendida no Centro Integrado de Saúde Amauri de
Medeiros (Cisam), que atende casos como o dela. São ao menos 40 abortos legais
por ano, segundo o doutor Olympio Moraes Filho, diretor do Cisam, e que já
cuidou de muitos casos similares, seguindo a lei.
Ao
lado da avó, e de seus bonecos de pano, a criança capixaba estava serena
enquanto aguardava o início da primeira etapa do procedimento, relatam
testemunhas. Estuprada desde os 6 anos por um tio, a vítima e sua família
perderam a privacidade inerente a casos tão violentos como este. Do lado de
fora da clínica, um grupo de pessoas de mãos dadas gritavam “Assassino” para o
médico Moraes Filho. A vó, no entanto, estava segura da decisão tomada,
seguindo o pedido da própria neta.
O
caso ganhou repercussão depois que a ministra Damares Alves, da Secretaria da
Mulher, deu publicidade ao caso em redes sociais, e enviou emissários para a
cidade do Espírito Santo. Neste sábado, Alves se manifestou em sua página do
Facebook, lamentando a decisão da Justiça de autorizar o aborto. Também
bolsonarista Sara Giromini, que ganhou fama por fazer protestos em frente ao
Supremo Tribunal Federal e chegou a ser presa, expôs o detalhes do caso nas
redes sociais. Damares já havia enviado emissários da Secretaria para São
Mateus para acompanhar o caso.
O
gesto da ministra criou um clima de terror e de caça às bruxas na Justiça de
São Mateus, uma cidade de 130.000 habitantes, a 183 quilômetros da capital
capixaba, Vitória. O assunto virou palanque político, segundo fontes próximas
ao caso, e uma “crueldade cínica” para a vítima, que é negra, e vive com a avó,
ambulante. A sensação de que ela poderia dar conta de uma violência dessa
estatura mostrou traços de racismo e indiferença pela sua classe social entre
os que a atenderam no serviço público, dizem. A menina vive um quadro comum a
milhões de crianças pobres no Brasil. Sua mãe foi embora, o pai está preso, e o
tio que a estuprou, e é procurado agora pela polícia, é um ex-presidiário.
A
avó, porém, é identificada como alguém bastante responsável com a educação da
menina. Só não estava por perto dela quando tinha de trabalhar. Tanto ela como
a própria neta deixaram bem claro à Justiça que queriam ser amparadas pela
legislação brasileira e interromper a gravidez que é fruto de violência. A
reação da menina era de desespero quando se insinuava manter a gravidez,
segundo testemunhas. Ela já está de 22 semanas, prazo limite para interromper a
gestação, segundo norma técnica do Ministério da Saúde. Para Fagner Andrade Rodrigues,
promotor da Infância e Juventude de São Mateus, a interferência externa, neste
caso, é inadmissível. “A difícil escolha íntima a cargo da família da vítima de
violência não pode sofrer interferência política, religiosa ou de qualquer
natureza”, diz ele. “Trata-se de uma violação abominável aos direitos humanos”,
completa. O aborto em caso de estupro de vulnerável está previsto no Código
Penal Brasileiro há 80 anos.
O
médico Olympio Filho encarou a pressão sem temer represálias. Não é a primeira
vez que o obstetra se vê diante de um caso que gerou estardalhaço público. Há
12 anos, ele chegou a ser excomungado pela Igreja de Pernambuco por interromper
a gravidez de uma menina de 9 anos, que também fora estuprada pelo padrasto.
Agora, sofre pressão de evangélicos do Estado. É ele quem vai examinar o caso
da criança grávida que chega do Espírito Santo para obedecer ao procedimento e
ao desejo dela. “Manter a gravidez é um ato de tortura contra ela, é
violentá-la novamente, é o Estado praticar uma violência tão grande ou maior do
que ela já sofreu”, afirma. Há, ainda, um risco obstétrico, de hemorragia, além
de pesar a ausência de estrutura psicológica para assumir uma maternidade fruto
de uma violência, alerta. “Primeiro é preciso preservar a criança [vítima do
estupro], e depois dar o apoio psicológico para ela superar isso. O dano é
muito maior se você a obriga a manter uma gravidez”, completa.
Um
dos pontos aos quais os conservadores se apegam é o fato de a gravidez ter
chegado 22 semanas. Essa seria a razão para o hospital que atendeu a jovem ter
sido contrária a apoiar a interrupção da gravidez. “Quanto sofrimento!”,
escreveu a ministra Damares Alves, em sua página no Facebook. “Os médicos do
Estado do Espírito Santo entendem que o aborto nesta idade pode colocar em
risco a vida da mãe ou deixá-la com sequelas permanentes, como útero
perfurado”, diz ela, algo que contradiz a própria norma técnica do Ministério
da Saúde.
A
norma prevê que em caso de estupro o aborto pode ser feito com até 22 semanas
de gestação, ou o feto pesar 500 gramas. A ministra, porém, apelou para seu
lado religioso ao abordar a questão. “Meu coração aqui apertado. Desde domingo
passado oro por esta criança para que tudo sua vida seja preservada e para que
ela fique bem”, disse, dizendo que confia no poder Judiciário para cuidar do
caso.
Especialistas
garantem que não há restrições para abortos quando a vida da mãe corre risco,
como é o caso da criança capixaba. Se por um lado há barulho e um clima
ameaçador para quem está dando suporte à menina capixaba, por outro, a
publicidade pode ter um efeito bumerangue. Ao cumprir a lei e realizar o
procedimento, o caso se torna pedagógico para os hospitais públicos de cidades
menores que se deparam com casos dessa natureza. A cada hora, quatro meninas
brasileiras de até 13 anos são estupradas, de acordo com o Anuário Brasileiro
de Segurança Pública, e a maioria dos crimes é cometido por um familiar. Em
2018, último dado disponível, foram mais de 66.000 estupros no Brasil, 53,8% de
meninas com menos de 13 anos. O embate de conservadores, incluindo a bancada
evangélica, se intensificou nos últimos anos, seguindo o padrão da direita
radical em outros países.
Fonte_COFEN
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