quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Mortes em abortos clandestinos podem aumentar com aprovação de PEC

Criminalizar o aborto em qualquer circunstância não vai diminuir o número desse tipo de procedimento no Brasil. Pelo contrário, vai continuar fazendo com que milhares de mulheres morram todos os anos por complicações no aborto clandestino. É o que afirmam representantes de movimentos sociais, instituições e especialistas sobre a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 181, cujo texto-base foi aprovado em novembro do ano passado, na Comissão Especial da Câmara dos Deputados.
Com a abertura dos trabalhos legislativos, nessa segunda-feira (5), as discussões sobre a PEC, que originalmente visava ampliar o direito à licença-maternidade da mãe caso o bebê nasça prematuro, devem ser retomadas para que sejam analisadas as sugestões de alteração ao texto principal – dentre as quais, a que abre caminho para tornar o aborto ilegal mesmo nas hipóteses previstas em lei: em caso de estupro, quando há risco para a vida da mulher ou se o feto for anencéfalo (não possuir cérebro). Só depois disso, a proposta segue para o plenário.
Para a representante do Fórum Permanente de Mulheres de Manaus Florismar Ferreira, a PEC é cruel e representa um retrocesso à bandeira de luta dos movimentos feministas que vem sendo levantada há anos em nível nacional e internacional. Ela afirma que o aborto tem que ser uma política pública e não pode ser tratado de qualquer forma. “Onde fica o direito de reprodução da mulher? Onde fica sua liberdade de escolha? De decisão?”, questionou
A pesquisadora Iraildes Caldas Torres ressaltou que o objetivo dos movimentos feministas ao defender o aborto é proteger a vida da mãe. “Estudos apontam que morrem pelo menos 250 mil mulheres todos os anos no País ao fazer o procedimento de forma clandestina. Isso poderia ser evitado. Nos países onde o aborto é legalizado diminuiu não só o número de aborto, mas também de morte materna, pois passa a existir uma política de planejamento reprodutivo efetiva”, explicou.
Ela, que coordena o Encontro de Estudo sobre Mulheres da Floresta (Emflor), questionou o que a sociedade quer para as mulheres. “Se dissesse: nasce a criança e morre a mulher. O que está posto não é a vida também?”, indagou, destacando que esse assunto é complexo, mas as pesquisas mostram que as mulheres morrem por fazer o aborto clandestino. “Se proibir isso, onde fica o direito da mulher sobre o  seu corpo, sua liberdade?”, questionou.
Para Iraildes, as mulheres a favor do aborto querem proteger a vida da mãe porque vivem uma contingência de gravidez. “O que nós temos que colocar em pauta é que a relação sexual engravida, que as mulheres são pessoas vulneráveis nessa situação porque nem sempre o companheiro quer usar preservativo e elas, por uma contingência dos afetos e amores, acabam não usando o preservativo e engravidam. Mas, uma vez que engravidou e não desejava, podia escolher se quer ir em frente ou não com a gravidez”, afirmou a pesquisadora.
Violência duplicada
A psicóloga Rosimeire Martins diz que a PEC 181 peca ao ter homens decidindo pela vida da mulher. “Proibir é pior do que punir”, salientou ela. “Hoje tem uma punição para quem pratica o aborto. Na prática, a mulher viola uma regra social e por isso tem que ser punida. Mas quem faz as leis? Quem determina as regras sociais? São os homens. As mulheres ficam reféns dessas regras sociais porque na cabeça dos homens elas têm apenas que cumprir”, afirmou.
Para ela, se a PEC virar lei, numa gravidez resultado de um estupro, a mulher sofrerá violência duas vezes, sendo a primeira a agressão que sofreu e a segunda não poder decidir sobre o aborto.
“É claro que ela não vai querer a criança. Em minha pesquisa de doutorado entrevistei 20 mulheres que foram estupradas, duas delas ficaram grávidas e abortaram. Então dizer a uma mulher dessas que ela vai ser presa, cumprir pena por algo que ela não queria, é inconsequência de quem cria a lei”, disse.
Rosimeire, que é autora do livro “Jovens Mulheres Vitimadas – Abuso Sexual, Sofrimento e Resiliência”, destaca que essas mulheres não têm mais saúde 100%. O estupro leva a implicações psicológicas nos relacionamentos e na vida de modo geral dessas mulheres.
“Das 20 que entrevistei, dez foram resilientes, foram capazes de superar o ocorrido, embora a marca fique para o resto da vida. As outras dez, incluindo as que engravidaram, não superaram e querem matar até hoje o estuprador”, revelou.
A doutora em psicologia reconhece que na nossa sociedade, embora sendo laica, a importância das religiões ainda é grande. “A maioria das pessoas acredita que fazer o aborto é matar uma vida, é um assassinato. Mas depende que momento se compreende isso. Cada um tem que decidir pela sua própria cabeça e não pelo que é proibido ou porque é pecado. Se é pecado, a mulher que ousa fazer deve se responsabilizar”, apontou.
Deve haver limite muito estreito
Para o pastor José João Mesquita, que é presidente da Igreja Presbiteriana de Manaus, o aborto é uma agressão à vida. Contudo, ele concordou que possa ser feito, em ocasiões muito especiais, como em casos que a gravidez oferece risco de vida a mãe ou em caso de violência sexual.
“Mas a pessoa tem a opção de ainda correr o risco para ter o filho”, enfatizou. E no caso de estupro. “Essa mãe também deve ter a opção de fazer o aborto por causa da violência que sofreu”, afirmou.
Porém, Mesquita, que é titular da Igreja Presbiteriana de Manaus, defende que a prática do aborto deve ter limite muito estreito. “Primeiro porque algumas mulheres que fazem muitos abortos têm consequências psicológicas terríveis e, segundo, se for aceito em qualquer circunstância vai haver muito crime, ou seja, vão matar muitas crianças antes de elas nascerem”, destacou.
O pastor revela que uma pesquisa realizada pela igreja em presídios de Manaus apontou que 60% dos presos não têm o nome do pai na Certidão de Nascimento. Para ele, o aborto só vai incentivar ainda mais essa situação “de entregar seu corpo a qualquer um e depois matar a criança que foi gerada”.
Mais de 4,5 mil abortos
Segundo dados do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS), do Ministério da Saúde, foram registrados no Amazonas, em 2016, 4.595 abortos (espontâneo, por razões médicas, outras gravidezes que terminam em aborto). Em 2017, de janeiro a agosto, foram 3.219 casos. Sobre mortes, os dados mais recentes vão até 2015. Na série histórica de 2006 a 2015, foram registrados 23 óbitos.
Justiça estadual possui 12 casos na área criminal
O “Crime de Aborto (arts. 124 a 128, CP)”, de acordo com o Código Penal, é tipificado como um crime contra a vida. No caso dos previstos em lei, o Tribunal de Justiça do Amazonas (Tjam) informou que não há classe ou assunto específico definido pela classificação processual do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), impossibilitando a estatística precisa dos casos que ocorrem.
Conforme o órgão, as petições para esses casos normalmente são do tipo simples e caracterizadas dentro do texto do próprio pedido. Dependendo do caso, são peticionadas por meio de Liminar, Habeas Corpus, etc.
Ainda segundo o Tjam, o que é possível informar é o quantitativo de processos em andamento de casos de aborto relacionados à área criminal.
Neste caso, há um Inquérito Policial – em tramitação na 2ª Vara do Tribunal do Júri; nove Ações Penais de Competência do Júri – em tramitação nas Varas do Tribunal do Júri; um Auto de Prisão em Flagrante – em tramitação nas Varas do Tribunal do Júri; uma Medida Protetiva pela Lei Maria da Penha (aborto provocado por terceiro), em tramitação no 1º Juizado Especializado no Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
Casos específicos têm apoio
A pesquisa “Percepções sobre o aborto no Brasil”, realizada pelo Instituto Locomotiva e pela Agência Instituto Patrícia Galvão e divulgada em dezembro do ano passado mostrou que 81% dos entrevistados afirmaram que concordam com a interrupção da gravidez, ao menos, numa dessas situações: em caso de gravidez não planejada; falta de condições para criar; no caso de meninas com até 14 anos; se o feto for diagnosticado com alguma doença grave ou incurável; se a mulher correr risco de vida ou caso ela tenha ficado grávida após ser vítima de um estupro.
Conforme a pesquisa, 45% dos entrevistados conheciam uma mulher que realizou um aborto ou interrompeu a gravidez. Em números absolutos, o percentual corresponde a 72 milhões de brasileiros com mais de 16 anos. Do total, 25% afirmaram que quem interrompeu a gravidez era uma pessoa próxima.
Uma em cada cinco mulheres com 40 anos já realizou aborto
Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto 2016, coordenada pelos professores Débora Diniz e Marcelo Medeiros, da Universidade de Brasília, e Alberto Madeiro, da Universidade Estadual do Piauí, uma em cada cinco mulheres com 40 anos já realizou pelo menos um aborto ao longo da vida. Em 2015, aproximadamente 416 mil mulheres interromperam a gestação por vontade própria.
Há, no entanto, heterogeneidade dentro dos grupos sociais, com maior frequência do aborto entre mulheres de menor escolaridade, pretas, pardas e indígenas, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Como já mostrado pela PNA 2010, metade das mulheres utilizou medicamentos para abortar, e quase a metade das mulheres precisou ficar internada para finalizar o aborto.
Entidades recomendam rejeição da PEC
O Fundo de População das Nações Unidas no Brasil (Unfra Brasil), a ONU Mulheres no Brasil, o Escritório da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde no Brasil (Opas/OMS) e o Escritório Regional para a América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) manifestaram preocupação com a eventual aprovação da PEC 181/15 que, em seus termos atuais, acarretará maior risco para a saúde das mulheres e meninas.
Conforme comunicado divulgado em novembro de 2017, com a inclusão do conceito de “concepção” como o início da vida e/ou condição para os direitos básicos das pessoas, a PEC desviou-se de seu propósito e do espírito original da vontade de legislação e também distanciou o Brasil dos compromissos internacionais firmados pelo país no campo dos direitos humanos, incluindo os direitos das mulheres, a igualdade de gênero, população e desenvolvimento.
“O Unfra, a ONU Mulheres, a Opas/OMS e o ACNUDH lamentam o retrocesso que a eventual aprovação da PEC 181/15 em seus termos atuais pode acarretar e expressam a necessidade de se estabelecer um diálogo amplo e aberto sobre o assunto, que incorpore os pontos de vista dos diversos setores da sociedade e, em particular, da sociedade civil organizada e dos grupos de mulheres, sujeitos prioritários desta legislação”, diz trecho do documento.
Também em comunicado, divulgado no mesmo mês, a Human Rights Watch, uma organização internacional não-governamental que defende e realiza pesquisas sobre os direitos humanos, recomendou que os parlamentares brasileiros rejeitem a PEC 181. “A proibição total do aborto traria consequências devastadoras para mulheres e meninas no Brasil”, comentou José Miguel Vivanco, diretor para as Américas da instituição.
Fonte_COFEN

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