A
Enfermagem representa o maior contingente de trabalhadores do Sistema
Único de Saúde (SUS) no Brasil. São 2.726.744 profissionais, segundo
dados do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), que atuam, não apenas
no reestabelecimento da saúde, nos hospitais, mas também na Atenção Primária em
Saúde, recuperando, prevenindo e promovendo a saúde da população
brasileira. Depois de anos de luta, em 4 de agosto de 2022, foi sancionada
pelo Executivo a LEI 14.434/2022, aprovada pelo Congresso Nacional, que
regulamenta o piso salarial da Enfermagem. A nova regra prevê o pagamento de R$
4.750 para enfermeiros; R$ 3.325 para técnicos de enfermagem e R$ 2.375 para
auxiliares e parteiras. Um mês após ser publicada no Diário Oficial da União
(DOU), em 4 de setembro, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo
Tribunal Federal (STF), suspendeu a lei por 60 dias, até que sejam
analisados dados dos estados, municípios, órgãos do governo federal, conselhos
e entidades da área da saúde sobre o impacto diante da implementação do piso.
Barroso é relator de uma ação de inconstitucionalidade impetrada pela Confederação
Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos de Serviços (CNSaúde).
Enquanto esta matéria era fechada, o Supremo havia começado a analisar, em
plenário virtual que deve se estender até o dia 16 de setembro, se mantinha a
lei sem efeitos, até a análise dos impactos da medida.
Atualmente,
o Brasil conta com 670.852 enfermeiros, 1.608.131 técnicos e 447.407
auxiliares, além de 354 parteiras, segundo dados do Cofen. Desse
total, são contabilizados pelo Cadastro Nacional de Estabelecimentos de
Saúde (CNES) cerca de 1.221.734 profissionais empregados. Segundo a
professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
(EPSJV/Fiocruz), Ialê Falleiros, apesar do alto número de profissionais, de
suas atribuições e responsabilidades, a categoria da Enfermagem sempre foi
tratada de forma pouco prestigiosa. “São as enfermeiras que coordenam o
trabalho de equipe, em geral, as técnicas e auxiliares de enfermagem que
acompanham os pacientes durante suas estadias nos serviços de saúde, com um
olho no suporte físico e emocional e o outro na realização da rotina prescrita
com todo cuidado para eficácia dos tratamentos”, afirma. Apesar da importância,
o piso salarial se tornou uma luta histórica da categoria. É o que afirma
Daniel Menezes, do Conselho Federal de Enfermagem. “Há mais de 50 anos que se
busca esse direito. A profissão foi regulamentada pela primeira vez em 1955 e,
desde então, buscamos alguns reconhecimentos, como o piso, e também a jornada
máxima semanal. Não temos nenhum direito garantido em lei. O projeto agora vem
fazer uma correção dessa dívida histórica que a sociedade tem com a enfermagem,
porque estabelecer um piso é erradicar os miseráveis salários que existem ainda
sendo praticados no nosso país”, argumenta Menezes. A opinião é reiterada pela
presidente do Sindicato dos Auxiliares e Técnicos de Enfermagem do Município
do Rio de Janeiro (SATEMRJ), Miriam Lopes. “A suspensão do piso nacional
foi de grande consternação de nossa categoria. Foi uma decisão lamentável, que
nós vamos reverter. Foi um ato de covardia com a nossa categoria”, diz.
Caso
não tivesse sido suspensa, a nova lei garantiria, desde o dia 5 de setembro, o
pagamento do piso salarial para a enfermagem em hospitais privados e
filantrópicos. Já o SUS, tem até o ano que vem para ajustar o orçamento. A
contestação da CNSaúde alegou que a mudança traria impactos nas contas de
unidades de saúde particulares pelo país e nas contas públicas de estados
e municípios. Já o ministro do STF argumentou que é necessária uma fonte de
recursos para viabilizar o pagamento do piso. Para Falleiros, a reação não foi
surpresa. “Desde que foi instituída, nos anos 1990, a Confederação tem
impetrado ações de inconstitucionalidade contra adicional noturno, adicional de
insalubridade, contra as trinta horas da enfermagem. Os argumentos são sempre
os mesmos: repetem que os recursos são escassos e os ameaçam dizendo que o
impacto econômico sobre o aumento ou a garantia de seus direitos ocasionará
demissões, fechamento de serviços públicos prestados pelo setor privado,
aumento dos custos dos serviços e o repasse para os usuários dos aumentos nos
valores dos planos de saúde”, explica a professora-pesquisadora da EPSJV.
Segundos
dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
(Dieese), para o cumprimento dos pisos será necessário um incremento
orçamentário anual de R$ 4,4 bilhões para os municípios, R$ 1,3 bilhão
para os estados e R$ 53 milhões para a União. A Confederação das Santas
Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB) argumentou
ser necessário um aporte de R$ 6,3 bilhões ao ano, enquanto para as empresas
privadas, haveria um aumento de 12,81% com os novos pisos. Entre as
possibilidades de financiamento do piso estão a correção dos valores da tabela
do SUS, a desoneração da folha de pagamento do setor da saúde e a compensação
das dívidas dos estados com a União. Para o conselheiro do Cofen, o discurso de
que setores privados não conseguiriam sustentar o reajuste é antigo. “Esse
discurso dos setores privados, especialmente dos setores filantrópicos, da aplicação
do valor mínimo, é antigo.
Historicamente,
essas instituições dizem que precisam de mais financiamento. O principal ponto
de embate é que o setor filantrópico, as Santas Casas, e o próprio serviço
público, estados e municípios, precisam ter mais financiamento na saúde. Nós
concordamos enquanto cidadãos e enquanto profissão. Historicamente, nesses
últimos anos, a saúde vem sendo desfinanciada, então a gente defende esse
financiamento até para melhorar a qualidade do serviço, não só para custear o
piso da enfermagem. É para a qualidade do atendimento, para a prestação do
serviço, para a compra de materiais, o uso de tecnologias. Nesse sentido, o
financiamento é defendido por todos e isso precisa ser visto, mas essa tarefa é
do Congresso Nacional e do Executivo”, afirma Menezes. Quanto ao setor privado,
o conselheiro é enfático. “O [setor] privado, com fins lucrativos, é o segmento
que mais tem lucrado nos últimos anos. Só na pandemia, no ano de 2020, os
convênios de saúde, os planos privados aumentaram em mais de 20% seu
faturamento. Nesse sentido, estamos bastante consternados com essa suspensão,
porque entendemos que toda essa análise não se sustenta”.
Dados
de 2018 do Observatório dos Técnicos em Saúde, da EPSJV, demonstram que
há cerca de seis vezes mais profissionais de enfermagem atendendo no SUS, do
que fora dele. Para Ialê Falleiros, os dados são importantes pois revelam como
deve se dar a relação entre trabalhadores e organizações. “Quem deve pautar essa
relação é o poder público, tendo o interesse público na melhoria dos serviços e
nas condições de vida daqueles que se dedicam aos cuidados de saúde da maioria
da população como foco central. As contas públicas devem se adequar a isso, e
não o contrário, como advogam os empresários do setor e os seus representantes
instalados na máquina pública. O piso regulamentado é o mínimo que se espera,
principalmente, após os últimos três anos de pandemia de Covid-19”.
Para
Isabella Koster, diretora Científica da Associação Brasileira de Enfermagem de
Família e Comunidade (Abefaco), durante a pandemia, a enfermagem reforçou ainda
mais seu profissionalismo atuando na linha de frente. “[Esses profissionais] se
expuseram à contaminação, trabalharam em condições precárias, inseguras e
insalubres, se afastaram das suas famílias, mas mantiveram o cuidado, mesmo que
dentro dessas condições, com a melhor qualidade possível. Na Atenção Primária,
atuaram junto às comunidades, acolhendo as pessoas com sintomas, organizando os
fluxos e os novos processos de trabalho, orientando os cuidados com a doença e
para o isolamento social e domiciliar, fizeram a vacinação acontecer de forma
ampla e rápida em todo o território nacional, concomitantemente à manutenção do
calendário vacinal e outras campanhas. Buscaram manter a todo custo os serviços
funcionando para realizar as linhas de cuidado, envolvendo as doenças crônicas
e transmissíveis, a saúde da mulher, da criança, entre outras. E hoje, estão
buscando restabelecimento e reestruturação dos processos de trabalho junto com
outros profissionais, considerando os aspectos endêmicos da Covid-19, assim
como os seus efeitos prolongados na saúde da população, junto com a piora das
condições de saúde gerais que vem buscando acesso e tentando recuperar a sua
saúde”, ressaltou.
Impactos
financeiros
Enquanto
o ministro Barroso afirma que a nova decisão dependerá de documento detalhado
sobre os impactos orçamentários do piso, além da adoção de medidas que resolvam
a questão, visto que entidades do setor de saúde afirmam que o aumento de
despesa pode acarretar redução de quadro de pessoal e eliminação de leitos
hospitalares. O Cofen e outros órgãos afirmam que o estudo já foi apresentado
ao Congresso, antes da aprovação do projeto de lei. “Nós acabamos de fazer uma
consulta para o Painel de Informações do Fundo Nacional de Saúde, disponível no
site do Ministério da Saúde e, hoje, há R$ 35 bilhões disponíveis para os
projetos dos estados. Esse saldo não está alocado em nenhuma despesa, ou seja,
está disponível para os cofres públicos estaduais, que poderia ser uma fonte,
nesse primeiro momento, para custear esse financiamento. Em relação ao impacto
dos R$ 16 bilhões, é bom lembrar que muitos profissionais de enfermagem já
ganham salários acima do piso, o piso corrige, na verdade, os salários miseráveis,
aqueles que ganham menos. Nesse sentido, no grupo de trabalho da Câmara, a
gente já pôde comprovar e está no relatório técnico, que o salário da
enfermagem reflete 2,7% do PIB da Saúde. A aplicação do piso representaria 4%
do orçamento do SUS. Isso representa 2% de acréscimo na massa salarial dos
contratantes. Em relação aos planos de saúde, para esses, a aplicação do piso
representa apenas 4,8% do seu faturamento (com dados de 2020). São esses
os dados que fazem o contraponto, o dinheiro existe sim, ele só precisa ser
melhor distribuído”, conclui Menezes.
O
impacto se mostra realmente significante quando se avalia a atuação dos
profissionais nos diversos níveis do sistema de saúde e as condições desse
trabalho. “Estamos falando de um contingente de cerca de dois milhões de
trabalhadoras, onde 85% são mulheres. A maior parte da equipe é composta por
técnicas e auxiliares de enfermagem, demonstrando a força da profissionalização
técnica da categoria profissional. No entanto, há problemas no quantitativo em
relação à população e na distribuição de profissionais pelo país de forma
não-equitativa. Toda a enfermagem se forma e se especializa essencialmente por
instituições privadas, ou seja, elas autofinanciam a sua própria formação e
especialização, e a profissão ainda é atravessada pelas questões
interseccionais, envolvendo marcadores sociais e raciais, de classe, raça e
gênero. Estamos falando aqui de mulheres, negras, mães-solo, em situações
socioeconômicas vulneráveis, que se deparam com condições de trabalho, emprego
e renda no mercado árido mergulhado na égide do patriarcado”, explica a diretora
Científica da Abefaco.
Para
o Cofen, o SATEMRJ, a Associação Brasileira de Enfermagem de Família e
Comunidade e dezenas de outras entidades da categoria, permanece a luta pela
defesa da constitucionalidade do piso salarial. Acolhendo um pedido da
categoria, o ministro Barroso autorizou a entrada de cinco entidades da
enfermagem e cinco entidades representativas dos hospitais como Amicus
Curiae (instituição que ingressa no processo com a função de fornecer
subsídios ao órgão julgador). As entidades também têm mostrado ser mais
viável a proposta de reajuste de valores da tabela de procedimentos do SUS e a
desoneração da folha de pagamento na área de saúde para financiar o piso
salarial da categoria. “Durante a pandemia, nossos técnicos e auxiliares de
enfermagem estiveram na porta dos leitos, cuidando dos pacientes com ética e
profissionalismo. As pessoas foram para a varanda, os jornalistas [nos]
chamaram de guerreiros, mas nós queremos o reconhecimento financeiro. É o
financeiro que sustenta nossa família, é o financeiro que dá alimento para
nossos filhos e netos e que nos ajuda a pagar as contas”, afirmou a presidente
do SATEMRJ.
Fonte_FioCruz
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