Na
linha de frente, os profissionais da saúde que lidam diretamente com a
Covid-19, estão mais expostos. Desde o começo da pandemia, só entre os
servidores da rede do SUS-BH, 241 foram contaminados até o dia 16 de julho
– 28% a mais se compararmos com uma semana atrás. Com a velocidade de
disseminação do vírus, não é possível afirmar nem onde nem como eles foram
infectados. Entretanto, uma estatística é certa: na área da enfermagem, o
índice de contaminação é três vezes maior em relação aos médicos.
A
reportagem cruzou os dados do quadro de profissionais contratados em cada
categoria, com número de casos confirmados pelo Boletim Epidemiológico
divulgado pela Prefeitura de Belo Horizonte. De 2.968 médicos que trabalham na
rede municipal da capital, 29 estavam infectados, ou seja, 0,97%. Já entre os
3.795 enfermeiros e técnicos, o índice sobe para 3,6%. São 139 casos, ou seja,
mais da metade (57,6%) dos profissionais infectados são dessas duas categorias.
Considerando
apenas os técnicos em enfermagem, o índice sobe ainda mais: 5,7%. Entre os que
fazem parte desses números, não há certeza sobre onde a doença foi contraída,
mas eles compartilham o desejo da ampliação da testagem, para aumentar a
segurança. “Eu só soube que estava doente porque outras duas técnicas que
trabalham no centro de saúde testaram positivo e nossa chefe pediu que todos
que tiveram um contato mais direto com elas fossem testados. Se não fosse isso,
eu poderia ter levado para minha mãe e minha irmã, ou contaminado outros
colegas, pois fiquei assintomática”, conta uma técnica de 21 anos, que pediu
para não ser identificada.
“Tive
sintomas leves, graças a Deus não passei para minha família, que era meu maior
medo. Eu fui testada porque estava com sintomas, mas acho que todos deveriam
ser testados, com o PCR, que é mais eficaz do que o sorológico”, conta outra
técnica em enfermagem, de 38 anos, que também pediu para não ter o nome
divulgado.
Por
meio de nota, a Secretaria Municipal de Saúde afirma que a categoria da
enfermagem tem maior número de profissionais atuando nas unidades de saúde e,
portanto, a exposição ao vírus pode ser mais recorrente. Destaca ainda que
todos os profissionais seguem protocolos e trabalham com os EPIs recomendados.
Risco
proporcional
Na
avaliação da diretora jurídica do Sindicato dos Enfermeiros do Estado de Minas
Gerais (Seemg), Carolina Brito, além de o número desses profissionais ser
maior em relação aos demais servidores da saúde, o motivo da categoria estar no
topo das contaminações está relacionado ao contato mais direto com os doentes.
“A gente fica à beira leito do paciente, dando assistência 24 horas.
Principalmente os técnicos, pois são eles quem realizam a higiene e dão a
medicação durante todo o dia”, afirma Carolina, que também colabora com o
Conselho Regional de Enfermagem (Coren-MG) e com o Conselho Estadual da
categoria.
Carolina,
que sentiu na pele os sintomas da Covid-19, agradece pelo privilégio de poder
enfrentar a pandemia longe dos familiares, mas conta o medo que sentiu,
preocupada em transmitir a doença. “Desde o começo, me mudei para outro
lugar, para proteger meus pais e minha irmã, que são do grupo de risco. Manter
o distanciamento familiar é muito ruim, mas é uma decisão consciente. Meus
sintomas foram leves, mas, como estava sozinha, outra sensação ruim foi a de
ter que organizar uma rotina para pedir ajuda, caso eu percebesse que meu
quadro estava se agravando. A gente pensa: será que vou conseguir chamar o
Samu? Será que minha vizinha vai abrir a porta a tempo?”, relata.
Carolina
não tem certeza de como contraiu a doença. Mas afirma que, quem está em contato
direto com pacientes, tem mais risco. “Eu não trabalho no atendimento de
Covid-19, mas trabalho em uma ala que, devido à complexidade, permite acompanhantes.
A gente acaba cruzando com pacientes e outras pessoas que circulam no hospital,
isso facilita a circulação do vírus, que já se alastrou”, observa.
Ela
está recuperada e voltou já voltou a trabalhar. Mas muitos outros profissionais
ainda estão afastados. É o caso de uma enfermeira de 25 anos, que trabalha no
CTI de um grande hospital, mas pediu para não ser identificada. No dia da
entrevista, ela estava no décimo dia de isolamento, com sintomas leves. “Eu
sempre tive e muito medo de pegar, pois eu moro com minha mãe, que é
hipertensa, mas ainda bem que ela não teve sintomas”, conta.
Essa
enfermeira estava trabalhando quando sentiu o primeiro sinal da doença. “Era
uma segunda-feira e eu tive coriza, então fui para casa. À noite, voltei para o
hospital porque tive febre alta. Fiz o teste e, na quinta-feira, saiu o
resultado positivo. Não dá para saber onde peguei, porque no hospital eu tenho
todos os equipamentos de segurança. Mas pode ser que, num momento de descuido,
eu tenha pegado na máscara e levado a mão à boca. Mas também posso ter pegado
no supermercado”, afirma.
Na
avaliação dela, é normal que técnicos e enfermeiros estejam no topo do ranking
dos contaminados. “Além de sermos um número muito maior em relação aos médicos
e fisioterapeutas, por exemplo, somos nós que ficamos prestando os cuidados
durante todo o dia”, ressalta a enfermeira.
Veja
alguns depoimentos
“Confesso
que, desde começo da pandemia, eu fiquei com medo, pois a demanda aumentou
demais e é a gente que atende o paciente. Quando eu testei positivo, pensei
primeiro nas pessoas que tiveram contato comigo. Eu não me preocupei comigo,
porque estava bem, mas pensava na minha mãe e na minha irmã.” (Técnica de
enfermagem, 21 anos. Trabalha em um Centro de Saúde de BH).
“Eu
tive tosse, mal estar e dor de cabeça. Fiquei isolada em casa mesmo, morrendo
de medo de passar para meu marido e meus filhos. Foi muito difícil ficar
isolada com filhos pequenos. Fiz o teste porque várias pessoas que trabalham
comigo tinham testado positivo. Eu acho que não estamos usando todos os
EPIs que deveríamos usar e, como atendemos diretamente as pessoas com suspeita,
corremos mais risco.” (Técnica de enfermagem, de 38 anos, trabalha em um Centro
de Saúde de BH).
Medo
de transmitir para a família faz parte da rotina
Priscila
Bonisson, 35, é gerente da Unidade de Decisão Clínica da Santa Casa BH. Num
cargo de gestão, ela não tem contato direto com pacientes de Covid-19, mas
pegou a doença. “O risco é diferente de quem está na lida diária da
assistência, no entanto, apesar de um cargo de administração, trabalho dentro
do hospital. Mas a verdade é gente nunca sabe onde é contaminado. O fato
de trabalhar em um hospital não significa que a pessoa foi infectada lá”,
explica a enfermeira, que adoeceu em maio e viu oito familiares serem
contaminados.
“Depois
de dois meses de isolamento, resolvemos passar o Dia das Mães com meus pais.
Dois dias depois, apresentei sintomas. Na minha casa, também pegaram meus dois
filhos e meu marido, que é médico. Uma tia também pegou. Minha avó, muito
idosa, infelizmente morreu”, conta Priscila, que se lembra da sensação intensa
de preocupação. “Minha mãe é paciente oncológica e chegou a ficar 18 dias
internada no CTI, mas felizmente conseguiu se recuperar”, relata.
Além
da angústia, a enfermeira conta que os profissionais da saúde ainda têm que
conviver com o preconceito. “Muita gente responsabiliza quem está em
contato com os pacientes. As pessoas têm medo. Alguns amigos não querem nos
encontrar, alguns vizinhos dão a volta quando nos veem. Mas não é porque a
gente trabalha no hospital que vai ser contaminado. Podemos pegar em qualquer
lugar”, afirma.
“Eu
tenho sorte de trabalhar em lugar que oferece infraestrutura e apoio
psicológico para equipe”, ressalta Priscila. Ela destaca que, desde o começo da
pandemia, já era esperado que os profissionais da enfermagem seriam os mais
contaminados. “A gente viu isso em outros países. São eles que prestam
assistência direta ao paciente. E o vírus não é transmitido só pela saliva ou
espirro. Tem as excretas dos pacientes. A cada banho, a cada troca de roupa de
cama, existe o risco”, afirma.
Na
Santa Casa, 56% dos profissionais contaminados são da enfermagem
Desde
março, a Santa Casa BH registrou 448 casos de profissionais contaminados. Desse
total, 56% eram enfermeiros e técnicos, 3,5% eram médicos e 40,5% eram das
demais áreas.
“Nós
temos 5.300 funcionários, sendo 3.000 da área assistencial. A grande maioria
são enfermeiros e técnicos. Então, até por questão de lógica, eles são
infectados em maior quantidade. A cada dez leitos de CTI, por exemplo, temos um
médico, oito técnicos e um enfermeiro por turno”, explica a superintendente de
Recursos Humanos da Santa Casa BH, Clarinda Maria de Macedo.
Sindicato
faz pressão para ampliação dos testes
O
Sindicato dos Enfermeiros do Estado de Minas Gerais (Seemg) vai enviar
notificações para as prefeituras intensificarem os testes entre profissionais
com ou sem sintomas. “Já existe uma ação ganha, do Conselho Federal de
Enfermagem, que obriga que todos os profissionais sejam testados. O que vamos
fazer é pressionar para que os hospitais cumpram”, afirma o presidente do
Seemg, Anderson Rodrigues.
Segundo
Rodrigues, a categoria enfrenta um desafio da sobrecarga de trabalho, o que
pode contribuir com os altos índices de contaminação entre enfermeiros. “A
enfermagem já vinha trabalhando com um dimensionamento errôneo. Agora, com o
aumento dos atendimentos de urgência, às vezes pode até acontecer um descuido
na hora da paramentação, o que aumenta o risco’, considera Rodrigues.
Pequenas
ações, grandes resultados
Para
os minimizar os riscos, algumas ações simples têm surtido efeito. João Paulo
José Vieira coordena uma equipe de enfermagem de um CTI em Belo Horizonte e tem
apostado na humanização.
“A
rotina da linha de frente é exaustiva e desafiadora. Quando a pandemia começou,
eu percebi um medo e desespero, mesmo porque a doença era nova. A humanização
tem sido uma estratégia essencial. No CTI, nosso lema é ‘Eu cuido de você e
você cuida de mim’. Percebi que o momento mais doloroso dessa rotina era entrar
e sair do hospital, com a paramentação e a desparamentação. O processo exige
muito rigor, pois é aí que o profissional pode se contaminar. Então, a gente
trouxe um olhar mais humano e implantamos um protocolo para que esses processos
sejam sempre feitos em dupla. Assim, um ajuda a fiscalizar o outro”, afirma
Vieira.
Lições
da pandemia: humanizar é preciso
João
Paulo Vieira divide a coordenação do CTI com Lilian Goretti Viegas Henriques.
Os crescentes números de casos, eles não podem controlar. Então, juntos, buscam
alternativas para deixar a rotina dos profissionais de saúde mais leve. “Nossas
equipes, com apoio do Comitê de Crise, têm investido muito para se preparar e
atualizar para que não faltem informações com embasamento crítico e teórico e
muito menos EPI´s para todos. Criamos um questionário para avaliar como
andam os conhecimentos da equipe multidisciplinar, podendo, assim orientar
ações contínuas de aprimoramento”, conta Lilian.
Assim
como os pacientes, o colaborador também está em foco. “Os treinamentos sobre
como paramentar-se tem sido contínuos, a cada dia o processo é renovado.
Entendemos a necessidade de trabalhar o calor humano, a empatia e a valorização
profissional para atingirmos o equilíbrio emocional de nossas equipes”, afirma
a enfermeira que, apesar de toda apreensão da rotina, tem como missão
transmitir a segurança. “No início foi uma sensação de medo. Agora, me sinto
mais segura no CTI do que no supermercado”, conta Lilian.
E
se todo dia tem desafio, também tem conquistas. “A pandemia de Covid-19 tem nos
ensinado muitas coisas: a sorrir com os olhos, a reinventar os abraços, a
perceber o quão carente de relações humanas nós somos”, afirma a enfermeira.
Avanço
dos casos entre profissionais da saúde compromete reposição de equipe e aumenta
a sobrecarga de trabalho
Em
apenas uma semana, o número de profissionais de saúde das redes pública e
privada cresceu 23%. Segundo o Boletim Epidemiológico da Prefeitura de Belo
Horizonte, no dia 9 de julho eram 547. No dia 16 de julho, já tinha subido para
674. Desse total, 35% são servidores da rede municipal de saúde. “Temos alguns
profissionais internados, alguns em estado grave. Mas, graças a Deus, não temos
notícia de morte em Belo Horizonte”, afirma o enfermeiro Hudirley
Rodrigues, diretor licenciado do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais
de Belo Horizonte (Sindibel).
Segundo
Rodrigues, o sindicato colhe dados junto aos profissionais dos centros de saúde
e das UPA’s. “Os casos de contaminação ntre os profissionais de saúde estão
aumentando muito. A partir do dia 13 de julho, a prefeitura ampliou a testagem,
o que pode ter refletido nesse aumento”, avalia.
De
acordo com Rodrigues, apesar da intensificação da testagem, Prefeitura de Belo
Horizonte deveria trocar o tipo de teste. “Estão usando mais o sorológico, que
detecta se a pessoa teve o vírus. Mas ele não é tão garantido, pois tem que ser
feito a partir do sexto ou sétimo dia de sintoma, para dar positivo. Seria
melhor adotar o PCR”, considera.
Por
meio de nota, a Secretaria Municipal de Saúde esclarece que já adota o PCR para
servidores sintomáticos ou não, que tiveram contato com pacientes positivos. Já
os testes rápidos (sorológicos) estão sendo aplicados entre os profissionais de
centros de saúde e UPAs que fazem parte de um inquérito, que tem o
objetivo de verificar a imunidade dos trabalhadores. Esses profissionais foram
sorteados para participarem do levantamento.
De
acordo com Rodrigues, outra preocupação da categoria é em relação à sobrecarga
de trabalho e à falta de reposição de profissionais licenciados. “Quando
servidores são afastados, o RH não faz a substituição imediata. Aqueles que
ficam, acabam realizando o trabalho dos que estão afastados. Isso aumenta o
risco de contaminação, pois aumenta a chance de cometer algum descuido, já que
o volume de trabalho é maior”, avalia o enfermeiro.
O
que diz a PBH
Por
meio de nota, a Prefeitura de Belo Horizonte afirma que tem investido em várias
frentes para que não haja prejuízo na assistência aos pacientes. “Desde março
até o dia 3 de julho, 487 profissionais tiveram a jornada de trabalho ampliada
temporariamente, para dar maior suporte ás unidades de saúde. Além disso, já
foram contratados 117 novos profissionais para atuarem nos serviços abertos
pela prefeitura ou nas unidades que tiveram ampliação na oferta de atendimento.
E para reposição dos trabalhadores afastados preventivamente por maior
vulnerabilidade à Covid-19, já foram contratados 474 profissionais”, diz a
nota.
Segundo
a Secretaria Municipal de Saúde, todos os dias o cenário assistencial é
avaliado para definir a necessidade de abertura de novos serviços específicos
de atendimento aos casos suspeitos de Covid-19.
Sobre
o protocolo de afastamento de profissionais, a Secretaria Municipal de Saúde
explica que indica o PCR para qualquer profissional que apresentar, por sete
dias seguidos, pelo menos dois desses sintomas: febre, calafrios, dor de
garganta, dor de cabeça, tosse, coriza, perda de olfato e perda de paladar.
Segundo
a Secretaria, esses profissionais são afastados imediatamente do trabalho e
permanecem isolamento domiciliar até o resultado do exame OU até preencher
todos os critérios de suspensão do isolamento domiciliar, que são: ausência de
febre por no mínimo 72 horas, sem uso de antitérmico; melhora dos outros
sintomas, e dez dias passados os sintomas.
Na
avaliação do enfermeiro Rodrigues, o protocolo precisa ser revisado. “O
resultado do teste tem demorado muito e, se a pessoa não apresentar sintoma em
dez dias, ela tem que voltar ao trabalho. Mas isso é arriscado, pois há a
possibilidade dessa pessoa voltar a trabalhar e, só depois, receber o
resultado. Então, pode contaminar outras pessoas. O correto seria adotar o
mesmo protocolo usado para a população com suspeita de Covid, que são 14 dias
de afastamento”, ressalta o enfermeiro.
Fonte_COFEN
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