Por Maria Helena Machado
A profissão da enfermagem reúne os elementos
essenciais no que concerne ao projeto de profissionalização descrito pela
sociologia das profissões. São eles: conhecimento esotérico próprio, vasto
mercado de trabalho exclusivo, além de ser reconhecida como uma atividade da
saúde. Trata-se da mais numerosa categoria profissional do sistema de saúde,
maior Força de Trabalho em Saúde (FTS) feminina na área da Saúde, precursora do
trabalho qualificado na saúde, bem como pioneira no tocante à
profissionalização de equipes técnicas, elevando, portanto, a escolarização de
sua FT e tornando-se exemplo às demais categorias da saúde.
Os mais de 2,200 milhões profissionais de
enfermagem estão presentes em todos os municípios, estados e regiões do país. É
possível afirmar que a enfermagem é uma categoria da saúde que atua (seja
enfermeiro, técnico ou auxiliar) onde há necessidade de assistência e cuidados
de saúde à população brasileira.
A pandemia de Covid-19 evidenciou essa
“essencialidade da enfermagem”, do seu trabalho profissional.
Somos superlativos. Somos milhões de profissionais
com o Ofício de assistir e cuidar dos que necessitam de cuidados. Estamos
presentes onde a população busca assistência à saúde.
A MAIOR FTS FEMININA DO SISTEMA DE SAÚDE
Estamos falando que do mais de 2,200 milhões de
trabalhadoras e trabalhadores de enfermagem, no qual 85% dessa FT é constituída
de mulheres. A hegemonia feminina é um fato que determina, definitivamente, a
Enfermagem como uma profissão feminina. Isso nos permite afirmar, inexoravelmente,
que a Saúde também se constituiu em um espaço feminino. Urge refletir e
questionar a realidade posta e imposta.
Os espaços organizacionais são adequados à essa
realidade de hegemonia feminina? Os salários ofertados nos empregos de
enfermagem acompanham e são compatíveis com sua função essencial no sistema? As
jornadas praticadas nos setores público e/ou privado e filantrópico são
compatíveis com a condição feminina de maioria absoluta de 85%?
É fato que a condição feminina acaba por promover
uma associação das atividades do trabalho às atividades inerentes à mulher
(procriação e afazeres à essa condição no âmbito familiar), o que provoca
efeitos, por vezes, severos de sobrecarga de trabalho, gerando a dupla jornada
de trabalho da mulher.
Importante reafirmar a hegemonia feminina desde os
primórdios da profissão, quando era exercida exclusivamente por mulheres. Isso
tem uma importância histórica sem precedentes no mundo do trabalho na saúde: o
pioneirismo das mulheres da enfermagem no setor saúde.
Somos mulheres trabalhadoras da saúde, somos
hegemônicas, somos maioria, somos predominantes na FTS.
PRECURSORA DO TRABALHO PROFISSIONALIZADO NA SAÚDE
EM ESCALA
A Enfermagem foi, sem dúvidas, a precursora do
trabalho feminino institucionalizado na saúde, quando as pioneiras da
Enfermagem fundaram o trabalho profissionalizado, traduzido em uma equipe com
formação técnica, vínculo formal, salário e jornada de trabalho
pré-estabelecidos, institucionalmente.
Um fato social pouco analisado com o devido
destaque sociológico refere-se ao rompimento histórico do trabalho religioso da
assistência aos enfermos, especialmente nas Santas Casas de Misericórdias – do
trabalho filantrópico, com advento do trabalho profissionalizado e remunerado
de seus serviços.
Nascia, naquele momento, o movimento de
profissionalização da Enfermagem enquanto uma profissão da saúde. O primeiro
passo foi dado a partir da ideia de que “ser e estar na Enfermagem” exigiu um
rito de passagem pela formação profissional, cercado de conhecimento formal e
específico, sistematizado em instituições credenciadas: as escolas de
enfermagem. Surgiu, então, a figura do docente, ou seja, daquele que professa o
conhecimento sistematizado, cientificamente credenciado. E o aluno, o aprendiz
do ofício, absorve e recria os ensinamentos, tornando-se um praticante do
ofício. Esse ato foi decisivo para a transformação da enfermagem em uma
atividade plena, rumo à profissionalização.
O profissionalismo assume lugar de destaque no
mundo do trabalho da enfermagem, definidora do seu status quo. A Escola de
enfermagem adquire o lócus para se obter o passaporte profissional: o
diploma/certificado do ofício da Enfermagem.
Seus serviços, agora especializados e
profissionalizados, passam a ter status profissional, requerendo remuneração
pelos serviços prestados. A isso, denomina-se: mercado de trabalho da
enfermagem.
A ENFERMAGEM E DESAFIOS FUTUROS: o Piso salarial
A Enfermagem enquanto categoria profissional é
exemplar, com movimentos históricos de profissionalismo, determinação, trabalho
pioneiro e essencial da mulher na saúde. Uma profissão com vocação no trabalho
interdisciplinar e multiprofissional como preconiza o SUS.
Contudo, ao longo do tempo, a enfermagem vem
lutando para reafirmar que a atividade caritativa e altruísta são coisas do
passado. Modernamente, trabalhar profissionalmente exige contrato, definição de
carga horária e remuneração equivalente e adequada. Entretanto, ao longo do
processo histórico, gestores e empregadores da saúde insistem em não cumprir
com essa premissa, pagando salários irrisórios e desproporcionais frente à
essencialidade do trabalho prestado.
Almejado por três décadas, o piso salarial, enfim,
foi aprovado recentemente pelo Congresso Nacional. Vale ressaltar que estamos
falando, da Lei Nº 14.434, de 4 de agosto de 2022 que trata do piso salarial da
enfermagem que estabeleceu a seguinte estratificação salarial: R$ 4.750 para os
enfermeiros, R$ 3.325 para técnicos de enfermagem (70% desse valor base dos
enfermeiros) e R$ 2.375 para auxiliares de enfermagem e parteiras, que equivale
a 50%. Anotem: à época da aprovação da Lei do Piso Salarial da Enfermagem
(agosto de 2022), o Salário Mínimo (SM) valia, R$ 1.212. Isso implica em dizer
que o piso salarial da Enfermagem, se convertido em SM ele representa: (3,9SM,
2,7SM e 1,9SM, respectivamente para enfermeiros, técnicos e
auxiliares/parteiras).
Mesmo com essa demonstração inequívoca da pertinência
e viabilidade da lei, ainda há polêmica sobre os gastos e as barreiras
administrativas para fazer valer o piso salarial! A polêmica está invertida:
devemos eticamente discutir se de fato esses valores pré-estabelecidos na lei
são exorbitantes inviabilizando o sistema de saúde ou se é apenas uma retórica
política para encobrir a real polêmica sobre a essencialidade da enfermagem e a
justeza da medida política. Creio que estamos pagando uma dívida moral e ética
que já dura décadas.
Aliado a esse cenário de polêmicas descabidas
travadas nas partes envolvidas e divulgadas pela mídia, pós-aprovação do piso
salarial tem-se um cenário de devastação de direitos sociais e trabalhistas
confiscados pelo governo atual contra os trabalhadores em geral, agravados
muitíssimo na saúde, por conta dos efeitos deletérios provocado pela pandemia.
As pesquisas recentes realizadas pela Fiocruz, sobre as condições de trabalho e
saúde mental dos trabalhadores(as) da saúde mostram um cenário complexo e
preocupante. E a Enfermagem não ficou ilesa nesse contexto, ao contrário, foi
atingida de forma brutal com milhares de contaminados e centenas que foram à
óbitos por Covid-19 (Cofen, 2022), mais precisamente, 256 enfermeiros e 617
auxiliares/técnicos de enfermagem, segundo Machado et al (2022).
Os dados de nossas recentes pesquisas na Fiocruz
(2021-2022), sobre condições de trabalho e saúde mental dos trabalhadores (as)
da saúde mostram um quadro em que:
* ¼ dos trabalhadores de saúde apresenta
comorbidades, sendo cinco as mais prevalentes: hipertensão, obesidade, doenças
pulmonares, depressão e diabetes;
* Mais de 70% apresentam com fortes sinais de
esgotamento e cansaço por excesso e sobrecarga de trabalho;
* A maioria denuncia más condições de trabalho
traduzidas em infraestrutura precárias e inadequadas, produzindo desconforto e
problemas ergonômicos;
* Biossegurança insuficiente;
* Salários baixos e insuficientes para seu sustento
e de um domicilio- trabalho precário apontado pela OIT- Organização
Internacional do Trabalho;
* Multiplicidade de vínculos, quase sempre
precários e temporários e muitos, na modalidade de bicos;
* Sequelas físicas e psíquicas heranças da pandemia
com enormes repercussões na vida diária desse contingente de mais de milhões de
trabalhadoras e trabalhadores da saúde, no qual a enfermagem é hegemônica e
essencial.
Finalizo dizendo que a gestão do trabalho na saúde
no pós-pandemia se mostra um cenário de dúvidas, dificuldades e desafios a
serem enfrentados, o que exigirá muito de todos nós, com negociações na gestão
pública e privada em busca da construção de uma agenda positiva que englobe
direitos e garantias sociais e trabalhistas para esse valoroso contingente. Há
muito por fazer para reconstruir e avançar pretendendo atingir o Trabalho
Decente preconizado pela OIT.
Ter salários dignos e boas condições de trabalho
que promovam o bem-estar e o sustento próprio e de sua família, começa em ter
assegurado o básico, corporificado primariamente no piso salarial.
A enfermagem deu o exemplo de cidadania e coragem e
vem resgatando sua cidadania profissional. Fora disso é retrocesso
civilizatório que devemos, com diálogo e compromisso social, buscar a cidadania
plena para todos os nossos trabalhadores da saúde.
Vamos ao debate!!
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